12 de abr. de 2008

AS BACANTES - EURIPEDES. ENCENAÇÃO CARLOS BARTOLOMEU/CFA-UFPE FOTO ADELMO LAPA
O paradigma dionisíaco

“Quando o “valor da vida” dá lugar ao “valor da utilidade”, assistimos ao triunfo de uma degenerescência que, sob o manto do moralismo, é, de fato, uma negação da existência em seu sentido pleno.



Tendo isso em mente, podemos apreciar, por meio de um verdadeiro saber desinteressado, desengajado, o retorno do paradigma dionisíaco, expresso nas múltiplas reações à unidimensionalidade econômico-tecnocrática. Rebeliões, revoltas, indiferenças políticas, importância da proxemia, valorização do território, sensibilidade ecológica, retorno das tradições culturais e recurso às medicinas naturais; tudo isso, e poderíamos à vontade continuar a lista, traduz a continuidade, a tenacidade de um querer-vive, individual e coletivo, que não foi, totalmente, erradicado. É a expressão de uma irreprimível saúde popular. A emergência de uma tática existencialmente alternativa. De alguma forma, um exercício de reconciliação. Reconciliação com os outros e com este mundo-aqui do qual partilhamos. Eis a “sombra” que Dioniso derrama sobre as megalópoles pós-modernas.



Com efeito, se ele está nos momentos em que o sentido se precipita, levando consigo os sonhos distantes, momentos “politeístas” e universais, momentos de tensão em que a alma do mundo se exalta pelo “porvir”, ele está em outros, em que, ao contrário, se aplica, bem de perto, a se enrolar no que está aí, valorizando o que é “dado”. Retorno à terra, imaginação do sentido. (...) Podemos acrescentar dizendo que a consciência coletiva busca se enraizar, se politeizar, fazendo ressurgir seus deuses com tantas “abreviações da parte fenomenal do mundo” (Nietzsche), é reinvestir nos mitos que, em resumo, narram um mundo que partilhamos com os outros.



Tudo isso que é um forte sinal de uma mudança de imaginário. Tudo isso que é a marca da pós-modernidade. A elaboração de uma coerência social vivida, paradoxalmente, de perto, mas com ajuda dos sonhos imemoriais,que embalam a infância de cada um de nós e que atualizam a juventude do mundo.



É isso mesmo que nos surpreende nos numerosos fenômenos sociais contemporâneos, em particular nas práticas juvenis. É o que está em curso na criação artística e na vida de todos os dias.* É o que se necessita pensar: a profunda significação do sem-sentido da vida. Uma significância que não se projeta. Uma força social que não se reconhece mais no mito progressista, ou nas teorias de emancipação que o expressam, mas que extrai sua << substancia medula >> de suas raízes, de uma natureza que lhe serve, ao mesmo tempo, de matriz e de escrínio.



Essa significância, que não se projeta e que vive o dia-a-dia dos mitos arcaicos, faz recordar algumas intuições, como a de Gabriel Tarde sobre a “repetição universal”, e certamente a iluminação nietzschiana sobre o “eterno retorno”, que se encarnam, concretamente, nas figuras da publicidade ou no ritmo lancinante da música tecno. As conversações cotidianas ou a importância da repetitividade nos noticiários jornalísticos são, também, ilustrações esclarecedoras.
(...)



A vida cotidiana não é tributaria da simples razão, ou melhor, esta não é a chave universal. Devemos associar a ela o papel da paixão, a importância dos sentimentos partilhados. Convém integrar, implicar, o jogo dos afetos, a imprevisibilidade dos humores, também o aspecto factual dos ambientes, sem esquecer a reverberação que não deixa de ter, no fim das contas, a memória coletiva que, feliz ou infelizmente, por sedimentações sucessivas, constituiu o sentimento de pertença próprio ao fator comunitário.



Estas são as “criptas”, próprias ao inconsciente coletivo, que se necessita levar em conta para compreender as efervescências , as irrupções, as abstenções, os desamores ou as súbitas histerias que caracterizam os fenômenos políticos, esportivos, festivos ou cotidianos, freqüentes na atualidade. Essas criptas são povoadas de fantasmas, de figuras maravilhosas ou assustadoras. Todas coisas “irreais”, mas não menos pregnantes, em todo caso presentes nos noticiários criminais, no paroxismo fanático, na comunhão esportiva ou no êxtase musical. A fantasia e o fantástico são, portanto, partes recolhidas da imaginação social, cujo efeito não podem mais ser negados.
(...) o desafio “está lançado pelo “barulhento” Dioniso ...”



In Michel Maffesoli – A SOMBRA DE DIONISO



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