15 de abr. de 2008




AS ARBITRARIEDADES DO INCONSCIENTE



CARLOS BARTOLOMEU


1992. É janeiro, noite na Rua Benfica. No pátio externo ao Teatro Joaquim Cardozo, acontece As Bacantes de Eurípedes, última realização do Curso de Formação do Ator, naquele espaço.




Lembranças: múltiplas sensações e a visão. Dioniso e seu séquito, em primeiro momento, é uma fotografia, em seguida, mostra-se e toma o quadro, a imagem periférica transitando da obscuridade à luz, escorre da memória individual.




Dioniso está só, após confrontar-se com Penteu. Por segundos, o deus aponta para o espaço vazio, braço erguido direcionado para frente. O dedo indicador sinaliza algo que está e não é desvelado. O protagonista da cena também desconhece sua indicação. O encenador assim o quer.




A cada representação, o ator se inquietará sobre o sentido oculto de sua gestualidade, pedirá que se revele o segredo, e apenas subsistirá a dúvida sobre o real sentido do gesto. Seu gesto (?)
Gesto deítico reenviado à própria personagem, e dela para os outros atores fora do espaço de representação e platéia. (4)




O encenador encerra o segredo para que a cada apresentação, o ator aguarde e preencha o silêncio com a presença de seu corpo. Que o corpo fale e a personagem assim se revele. Mas, ele, ator, não pode saber, alguns poucos, dentre a platéia, sensibilizados, pressentirão apenas.




Dúvida e insegurança vão sendo incorporadas no entretecer da trama, e sua ação sobre o desempenho, concorre para a ambigüidade, instalando segundo minha ótica, a expectativa, o devir, o surpreendente.




É uma consciente ilusão de poder, uma forma pueril de apreciar a fragmentação do controle, é reconhecimento da necessária interferência do desconhecido, do mais provisório ainda, e nele, o derrisório, o erro. (5)




O corpo do ator se tenciona, estremece visivelmente, descontraindo-se logo em seguida, é atraído pelo indicador que aponta... Acompanha a sinalização, deslocando-se para o espaço sugerido.




Eis um daqueles instantes, onde o "automatismo" se opera. Compreenda-se nisso, uma forma autoral de revelar a confiança de que gesto ou movimento, sob uma tensão construída, é levado a escrever seu próprio discurso e 'grosso modo' presentificar uma idéia. "De fato, não se trata mais de exercer, pela exibição do corpo, um fascínio mais ou menos explicitamente erótico sobre o espectador, mas de assumir esta revelação freudiana; o corpo tem alguma coisa a dizer; ele é uma outra palavra." [ROUBINE, 1990, p. 47]




Braço e mão relaxam, deixando-se estender ao lado do corpo, apaziguados, em concordância, premeditando por trás de outro ocultamento, uma outra intenção, uma surpresa e a desconstrução.




Das primitivas coreografias desenhadas para as personagens míticas de As Bacantes, procedia a idéia de, através delas, recuperar religiosidade e experimentação artística. A evolução em um circulo monótono, sancionava em seu continuo, a possessão, o transe.
Minha visão detinha-se, tomando como modelo, o andar feminino, pois, "as mulheres não desafiam ou se separam da terra: movem-se ao longo de sua superfície” [HANNA, 1999, p.127]




O masculino, entretanto, oferecia uma sólida presentificação na cena. Como exemplo, Penteu ao ser tragado pela magia do deus, mimetizava Dioniso numa atitude acentuadamente cômica. Vestido como uma das bacantes, ritmava agressivamente o tirso sobre a terra, enquanto batia dura e seguidamente a planta dos pés contra ela.
A movimentação do coro feminino, ironicamente aludia aos detalhes dessa gestualidade masculina, dela subtraindo a violência viril e recompondo-a ebriamente e com certo langor.

"No oeste de Java, Kathy Foley (1985) observou que as mulheres se movem em curvas, com um caráter lânguido e sonambúlico, enquanto que os homens sempre se movem em linhas de tensão, angulosidade, arrancos elásticos, violência.
A mulher em certa etapa da vida manifesta esse ideal piedoso nas danças de transe e semi-rituais, em toda a região. 'As dançarinas, por sua anatomia, são ânforas apropriadas para o divino refinamento. (...) Esvaziadas, no transe, de seu ego individual, elas retornarão a um arquétipo piedoso, daí a especial importância das mulheres capazes de transe e, paralelamente, das dançarinas, (...) Uma vez que o corpo da mulher é a ânfora apropriada do divino, no transe e na dança teatral o movimento é todo em círculos: nenhum demônio pode entrar nele." [HANNA, 199, P.131-2]





No prazer estético e no fruir do estado religioso do movimento processional, o ensejo da carnavalização coincidia.
Intimamente, eu pregava culto à Festa e através dela, reverenciava todas possibilidades de encontro, e as fusões totais: Penteu-Dioniso. Mas, eu silenciava também sobre este assunto.
Não falar é uma das maneiras de conduzir. (6)




Trazer, porém, minha memória à tona, é a forma que agora aciono, na esperança de aproximar, aqueles que puderam acompanhar minhas idas e vindas na cena teatral a uma espécie de compreensão daquilo que em muitos sentidos ficou como metáfora inexplicável.
É uma maneira de estar com aqueles, que no futuro tentarão perceber a dimensão do fazer teatral de um tempo já desaparecido. Confiando que eles tenham mais compaixão com a forma e as revelações de uma criação, que em última análise, talvez, só tenha importado como o caminho de ordenamento interior de quem a realizou.




Recordo a mim e meus atores em seus receios de não atingirem a meta. Ouço suas vozes, partículas de sonoridade. Reordeno seus corpos na câmara lenta da minha memória.




Iniciantes, mal sabiam quão pouco, muito pouco, poderiam reter ou conservar de significativo diante da brevidade do tempo: um gesto incompreensível, uma passada sem razão e é tudo tão breve quanto a duração de uma peça. Embriagados, batem os pés, evoluem circularmente, sobre o terreno nu cercado de um semicírculo de lamparinas votivas, que não tentam esconder certo apelo cristão. E esse tipo de luminosidade reincorpora lembranças quaresmais, luzes de ressurreição.




Influenciando os atores em sua ação de comunicar diretamente ao público, minha verdade autoral (7), procurava destacar através do uso enfático do gesto, a necessidade do confronto com a palavra, ou mesmo da substituição desta. Assim, eu considerava na certeza do espetáculo ser o fundamento; estabelecendo que muitas vezes a palavra poderia ser amplificada ou mesmo substituída pelo gesto, com a mesma honesta desenvoltura com a qual somos muitas vezes levados a descartar os intérpretes.




Apesar do esforço de trabalho, que é para muitos atores penetrar no universo das tragédias, exercer-se diante de Dioniso, produz uma forte sensação de pertencimento e teatralidade prazeirosa.
Misto de polarizações, Dioniso é o repouso dos gêneros, nele o masculino e o feminino convivem em harmonia.




No tocante a relação do deus com o grupo propriamente das bacantes, estilizei a feminilidade dos intérpretes, optando por estabelecer suas marcas em mesma sincronia com as delas. Defini a sua masculinidade em acordo com o elemento terra, sexualizando o toque do tirso contra o solo, pontuando passo a passo, sua caminhada.
Se em parte a inspiração deve ser atribuída às danças circulares, o vocabulário simbólico da gestualidade afetiva constituída pelos atores influiu sobre a criação.




A visão dos intérpretes em sua aflitiva busca por uma ação, que se configurasse adequada a idéia de grandioso que se tem da tragédia, foi reveladora de formas e desenhos que justapostos as mensagens da iconografia e estatuária helenística, resultaram a meu ver num modelo equilibrado do ato. Um ballet cuja dimensão sincrética aproximava-se de nossa maneira popular de dançar. Diria que eram gestos familiares, reconhecíveis.




Ao fim de tudo, mesmo a familiaridade se dissolverá dentro de mim, um dia. Dentro de nós todos, e não guardaremos sempre, o mesmo sentido. O gesto e seu significado serão passíveis de desconstrução. Recomposto, em novo proceder será entendido, e decifrado diversamente do que pode ser na atualidade. Ao fim de tudo, a arte do teatro repousará na impermanência constante, o segredo de sua renovação terá como fator esta singularidade. O alcance de aceitarmos esta realidade acordará dentro de nós, sempre, o surpreendente.










NOTAS



4)- Em SEMIOLOGIA DO TEATRO, o ensaio de Maria Helena Pires Martins considerando a relação do teatro com o texto cênico, identifica o gesto tanto quanto mensagem independente, como tambem em sua relação com a mensagem verbal. Os gestos que acompanham a fala são denominados, de redundantes, negativos, deíticos (Por exemplo, "no caso de uma declaração de amor, coloca-se a mão no peito.") Gestos emotivos são reveladores de "estados emocionais do sujeito que não estejam sendo verbalizados e, por isso mesmo, não possam ser englobados pelas categorias de redundância ou negação. Os gestos metalinguisticos, ou seja, aqueles que substituem a linguagem verbal, são altamente convecionalizados e usados quando a língua falada não possa ou não deva ser usada. Como exemplo claro podemos citar o V d vitória, executado com os dois dedos indicador e médio.(...) Os gestos que independem da fala podem ser: afetivos- quando tiverem objetivo revelar um estado afetivo do sujeito. Distinguem-se dos emotivos pelo fato de não estarem somente relacionados aos assuntos discutidos verbalmente. Fáticos ou de contato- Quando pretenderem estabelecer ou verificar o contato entre interlocutores. Estéticos- (...) São gestos que atraem atenção para sua própria forma, que se afastam do padrão cultural, propondo uma série de interpretações até então incomuns." [1988, pp.258-61]

5) Utilizei como epígrafe do Programa de O ARQUITETO E O IMPERADOR DA ASSÍRIA, uma explicação de Fernando Arrabal sobre o seu teatro. "Os personagens das minhas peças sou eu. Tudo aquilo que eu nunca fiz. É um exorcismo, uma liberação. (...)Eu escrevo para mim, como para me drogar. Se o público gosta, tanto melhor. É um jogo, uma exaltação. "


6)- Anos atrás, dirigi uma leitura de um texto de Gil Vicente, "o Auto da Fé". O entorno, ao meu ver, excessivamente respeitoso motivou-me mais uma vez considerar a necessidade de exaltar o viés lúdico dentro deste trabalho, aos atores e ao público deste "brinquedo", dediquei as seguintes considerações: "A nossa língua tem palavras específicas para o ato de representar: interpretar, atuar. Ao contrário do francês jouer e do inglês To Play, somos altivos: interpretamos! A idéia do lúdico, da brincadeira chega a nós, dentro do teatro, distanciada, longínqua. As brincadeiras, o arremedo infantil reveladores em profundidade do real, passam ao largo, como se fossem menor, diante do edifício intelectual da dramaturgia e da atuação.(...) não intenta finalizar o registro da marcação teatral, é mais na desconstrução e na aparência de desordem que se orienta...e se desculpa."

7)- O significado dessa confissão documenta a necessidade, premente, as vezes, de cortejar o ambíguo, como servidor do tempo de uma produção, auxiliar na interpretação do ator, de uma personagem, recurso, enfim. Exemplo disso, posso citar, a personagem do Imperador, em O arquiteto e o Imperador da Assíria de Arrabal. Afim de tentar transmitir a "loquacidade" de determinado movimento dessa personagem, vi-me compelido a construir para atriz Magdale Alves, uma versão muito particular e criativa dos Grandes Balés russos. A versão nasceu, a partir da recordação de uma cena de dança, em Mulheres Apaixonadas de Ken Russel. Até hoje, guardo o desconfiadíssimo olhar da atriz, sobre essa minha fabulação. Creio, ter valido a pena. A cena ficou assim: a atriz impulsionava o corpo pra cima, batendo duramente, ambos os pés. Realizava um giro completo com o corpo e frontalmente se abria em "X", para o público. O efeito era singular e o "desconfiadíssimo olhar" produzia um efeito de insegurança que realçava a dimensão do poder do Imperador.





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