Entrevista com o encenador e poeta Carlos Bartolomeu
3 de dezembro de 2012 gztdaniela
Carlos Bartolomeu é encenador, poeta e professor de Teoria da Arte, da Universidade Federal de Pernambuco. Conhecido por seus atores e amigos como Bartô, não deixa de expôr as verdades necessárias, dentro ou fora da cena. Querido no meio teatral pernambucano, e diretor de extremo bom gosto em suas concepções cênicas, se destaca através das suas montagens, seja dentro ou fora do ambiente acadêmico. Todos querem ser dirigidos por Bartô, não é à toa as montagens premiadas e os caminhos estéticos estabelecidos por ele. Nessa entrevista vamos conhecer seu trabalho e o que pensa a respeito de Nelson Rodrigues e suas grandes invenções, que tanto contribuíram para o teatro brasileiro.
CARLOS BART ao lado da estátua do poeta JOAQUIM CARDOZO
GAZETA CULTURAL PERNAMBUCO: QUAIS SÃO AS SUAS PREFERÊNCIAS ESTÉTICAS QUANDO CONCEBE UMA MONTAGEM TEATRAL? QUAL SEU PONTO DE PARTIDA?
Carlos Bartolomeu: Formular um espetáculo do ponto de vista do encenador deve ser entendido com um esforço na tradução de sua própria poética. Do meu ponto de vista, a criação da cena revolve sentimentos e conhecimentos que teimam em expressar uma visão de mundo próprio. Reitero com isso, certo descompromisso com as convenções antecedentes que seriam tomadas como modelo, mesmo quando essas são legítimas, consagradas no mais arcano do universo teatral. Inclino-me muitas vezes a mitificar, sublinhar aspectos particulares do meu mundo íntimo. A minha percepção do universal é feita da conversa dentro em mim com as lembranças de falas das ruas e das gentes de fato, e as da invenção e do sonho. A verdade do que seja real em mim é apreensão de poesia e das dores pequenas.
Pratico um teatro mestiço, barroco na tentativa de se deixar comunicar, perdulário nas mesmices reveladoras do estar sempre escapando para dentro de si mesmo. Subjetivamente objetivo, dentro das crendices de minha suposta teatralidade. Duvido do trágico no agora em que vivemos, e escapando da cena dramática no palco para aspectos de um imaginário cinematográfico, dimensiono recortes arbitrários de minhas recordações, fotos de infância, gosto e mau gosto, lirismo, paisagem radiofônica, melodrama e toda uma sorte de bobagens, clownerie. Roteiros… Roteiros… oswaldianamente. É amor de namorado as ilustrações, escuta de sussurros que me possam surpreender, embaraçar.
Ao tecer a cena me alegra cair no abismo e dissolver-me na reinvenção do já inscrito. Agrada-me sempre a quebra do espelho que é o texto dramatúrgico, da imagem literária desventrando-se e abrindo-se à espetacularidade. A presença de um ator na misteriosa substancia de ‘gente’ dialogando com a visão criativa do encenador, devolve aspectos humanos e de uma frágil sabedoria ao palco mais que todos os compêndios do que seja encenar. Bem ou mal, um ator nasce do diálogo. E o dialogo da encenação nunca está escrito, é a importância da conversa e a negação desta nos diversos níveis de criação. Espera-se de mim certa compostura, mas, adoro ser bufão nesse papel de condutor.
GCPE: POR VEZES OBSERVAMOS EM CERTOS DIRETORES A VISÃO CÊNICA COMO UM TODO. E O ATOR? COMO É SEU PROCESSO DE DIREÇÃO DE ATORES? QUE CUMPLICIDADE ESTABELECE E O QUE EXIGE PARA O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE PERSONAGENS EM SUAS MONTAGENS?
CB: Meus espetáculos sempre partem do ator que eu tenho em mãos. Isto pode ser excelente, como também pode se tornar enfadonho e regressivo, no tocante, aqueles intérpretes sem coragem de entrega. Há atores de natureza intelectual e reflexiva; outros existem cujas personalidades transportam um sem numero de ricas vivencias emocionais. Ambos são possuidores da energia vital às transfigurações. Aprecio tal diversidade, e verdadeiramente ouço suas fraquezas, tomando eles pela perspectiva da reinvenção. Tal dinâmica imprecisa, mais poética, a meu ver empresta significado as interpretações de atores e encenador, dispondo na direção do presente todo corpo criativo da montagem teatral.
Imagino eu, que todos compreendam a importância da liberdade e originalidade de pensamento e da ação do individuo na jornada criativa. Não desmerecendo a cópia e seus apreciadores, até porque em muitos casos esta pode ser bem melhor que o original, penso que o atrevimento em desmascarar-se, é o mesmo que se mascarar, condição sem a qual toda teatralidade perde o brilho. Procuro na medida da sensibilidade de meus intérpretes, confiar que suas criações se processem para além de modismos teatrais. Escutar é um dever sagrado no nosso oficio. Forçar uma audiência a compreensões de uma obra é temerário, para mim a entrega absoluta é se calar as explicações e no abandono da pratica dionisíaca, realizar. Não me importo de fato, com desdobramentos daquilo que emerge da minha obra.
O Teatro é um sinal sobre os batentes de uma porta que estando aberta, pode ou não ser visitada. Entra em minha casa todo aquele que saiba o quanto a alegria é uma festa, a dor é passagem, pois tudo se acaba e se encaminha para o vazio. O teatro vivo é repleto deste silêncio, desse não significado. Aquele que pisa o tablado sabe o quanto somos filhos da invenção, mas também concreção de idéias, humores e emoções universais. Carne e osso. Sombra e luz. Do teatro, amo a relação criadora, a criativa caminhada que não tem fim. Dessa perseguição amorosa, o encenador é artífice inaugural e penso que o menos compreendido, apesar da aparência de potência, dono da última palavra, o que de fato não corresponde a verdade. Nem mesmo o público é este senhor. O Tempo este sim é em definitivo o dono da criatura e criador, visto que em seu aspecto mais recôndito toda arte sonha a imortalidade, o futuro.
GCPE: QUAIS SÃO SEUS TEXTOS PREFERIDOS E QUAL DELES JÁ MONTOU? FALE SOBRE OS PRÊMIOS QUE JÁ RECEBEU:
CB: Gosto das tragédias gregas e sempre acho, que depois delas, o Texto como cerne do teatro deu lugar à possibilidade ao arbítrio, da criatividade pessoal dentro da Cena. Instalando a soberania de vozes diferentes da original, quebrou as fronteiras do compromisso primitivo do teatro em honrar determinadas normas do sagrado de sua realização.
Quando falamos de teatro, pensamos primordialmente e erroneamente nas características textocentricas. O texto teatral é um dos seus elementos. Há outros, tão ou mais importantes, ao sabor das novas vontades e critérios da arte. O diálogo do teatral com as inovações em diversos campos artísticos tensiona sua ação, motivando originalidade e mudança constante. Teatro é crise. A característica da teatralidade é a incorporação do surpreendente que iluminando o lugar comum, redescobre no já acontecido, potencialidades de contar-se novamente, catalisando cumplicidade na observação do atuante e do espectador. Numa montagem esse efeito-síntese tem dimensão ritual. Todo veio da teatralidade nos leva a quebra do pensamento como centro, inaugurando no vazio a desarticulação do entendimento racional. É revelação e esta é indizível. De qualquer modo, uma apreciação pessoal não determina necessariamente uma realidade, sempre é poesia da poesia, nada mais.
Quanto a ser premiado tenho a alegria de ser ganhador do “SAMUEL CAMPELO”, em três ocasiões como encenador. Fui premiado com o “Troféu Carlos Pena Filho” de montagem, tendo também recebido mais três vezes, o prêmio de melhor encenador no Janeiro de Grandes Espetáculos. Tive a honra de representar Pernambuco em alguns festivais nacionais com títulos como ‘A Mais Forte’ de Strindberg, ‘A Vida Diva’ de minha autoria e ‘Madleia + Ou – Doida” de Henrique Celibi. Como escritor produzi:” O Testemunho de Atores: Panorama do Teleteatro da TV Jornal do Commercio”;TEATRO SUSPEITO; “Cartas de Prego – Instruções de Abordagem & Desculpas Cênica e A Testemunha Criativa nas Encenações.
GCPE: ESTAMOS HOMENAGEANDO NELSON RODRIGUES NESTA EDIÇÃO. FALE UM POUCO SOBRE ELE:
CB: Penso em Nelson como um daqueles pernambucanos migrantes, defrontado com a realidade do distrito federal, retirando de seu capital emocional, do lastro da cultura recifense e da sua história familiar o capital necessário para vencer a medianidade de um tempo.Um artista grandioso em sua relação de comunicador, artesão de conceitos inovadores. Provocador e vencedor. A natureza de seu brilho é o abraço sincero e completo que ele empreendeu as coisas e seres deixados à margem. Como autor e homem, ele nunca se evadiu de percutir em seu imaginário, a ambigüidade das idéias que o conduzia, ou dos pontos de vista que o mesmo teceu. Apesar disto ou por isso mesmo, sua ação teatral é sem sombra de dúvidas a mais corajosa e verdadeira do teatro brasileiro. Nelson nunca se poupou de traçar na mestiçagem de seu DRAMA, as tramas oriundas da linguagem do jornal, a mimesis cinematográfica e o despudorado gosto por gêneros ‘menores’ da dramaturgia. Ele mesmo era um encenador da própria palavra. A sua obra percorre o simples e o sofisticado, indo do ardente a preciosa concisão. Ao lado de um João Cabral e de Manuel Bandeira penso que compõe a trilogia dos grandes criadores de Pernambuco do século que passou, no sentido da redefinição de novos horizontes das artes do Brasil, quanto na perspectiva de emprestar a obra, um cunho pessoal indelével e audacioso. A riqueza subjetiva de tais criadores ilustra o horizonte geral no qual se debruçaram.
GCPE: SE FOSSE ESCOLHER UM ESPETÁCULO DE NELSON RODRIGUES, QUAL DELES MONTARIA EM HOMENAGEM AO SEU CENTENÁRIO? PORQUE?
CB: Gosto demasiado de Nelson par atribuir uma estima específica a esta ou aquela obra. Todavia, projeto “Toda Nudez Será Castigada” e Vestido de Noiva” na classe das obras artísticas que atravessarão o tempo, preservando a forma e adaptando-se ao crivo existencial das épocas subseqüentes. As sinto como ‘clássicas’ no nascedouro, depositárias de uma capacidade de refletirem a sociedade ao longo dos tempos, a um só tempo renovar a possibilidade das invenções cênicas.
GCPE: QUE TIME DE ATORES ESCOLHERIA PARA ESSA MONTAGEM? QUAIS SEUS ATORES PREFERIDOS?
CB: Pensando como encenador, diria que gostaria de ver um ‘time’ de bailarinos e cantores encenando uma versão qualquer de alguma obra de Nelson Rodrigues. De fato, anos atrás criei um roteiro para balé de ‘Vestido de Noiva’. Eu e Monica Jápiassu pretendíamos realizar esse trabalho. Não podemos finalizar tal edição. Contava com um elenco liderado por Maria de Jesus Baccarelli e Bernot Sanches. O roteiro guardei-o, a vontade de realização também está preservada.
GCPE: NELSON RODRIGUES TEVE UMA VIDA FINANCEIRA MUITO SOFRIDA, PASSANDO POR FASES DE EXTREMA POBREZA. CONTEXTUALIZE ESSA CONDIÇÃO COM A REALIDADE DOS PROFISSIONAIS QUE VIVEM DE TEATRO EM PERNAMBUCO:
CB: Nem pensar, Nelson nunca concorreu aos ‘funculturas’. Respeitando a concorrência prefiro ver o Nelson na realidade de seu tempo. Um jornalista que vivia de seus escritos. Acho que dificilmente ele seria – reconhecido- pelas mesas de julgamento e premiação. Afinal era um obsceno: um fora da cena, sim. Criador delas.
GCPE: VOCÊ CONSIDERA O “ANJO PORNOGRÁFICO” UM PERVERTIDO OU UM ESCRITOR QUE DENUNCIA O FALSO MORALISMO DA NOSSA SOCIEDADE?
CB: A poesia de Nelson pode e deve suportar e potencializar tudo isso. Perversão, angelismo, pornografia são dentro da linguagem do humano, forças de luz e obscuridade presentes na criação de todo artista real. Se ouvirmos bem as vozes que ecoam da garganta Rodriguiana, vamos saber do timbre viril de uma moral soberbamente bem resolvida. Para Nelson existe o mal, há o pecado, a tentação e a dificuldade de redenção fora da moralidade verdadeira. A condenação em Nelson está sempre presentificada na desfaçatez do disfarce. O sujeito falso moralista é o câncer da epopeia de Nelson Rodrigues.
GCPE: NELSON RODRIGUES FOI UM TRANSGRESSOR OU UM TRANSFIGURADOR DO NOSSO TEATRO?
CB: Nelson foi um anjo, Só.
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