28 de set. de 2009

-UM TEXTO SOBRE O TEATRO PERNAMBUCANO DE AUTORIA DE LUCIA MACHADO-
"Antonio Cadengue, em um artigo para o Correio das Artes (João Pessoa), intitulado “Pequena Cirurgia”, faz uma análise de A Mais Forte, enquanto escritura dramática, de modo a apresentá-la ao público, e saúda a mais recente realização da ainda recente Casa de Ópera:
“É
extremamente gratificante recorrer a Strindberg para realizarmos o segundo trabalho da Casa de Ópera. As inovações, as grandes transformações por que passou o teatro moderno – e cerne das preocupações nossas enquanto grupo teatral – foram para ele, não só preconizadas como vivenciadas. E isso comunga com nosso ideário estético-ideológico.
Ibsen, o dinamarquês prêmio Nobel, embora inimigo mortal de Strindberg, mantinha em seu escritório um retrato seu, e dizia: ‘Não posso escrever uma linha sem aquele louco ali parado, olhando para mim com seus olhos de doido! É verdade. Strindberg, olhando com loucura para a vida nos possibilitou momentos indeléveis da literatura dramática que agora a Casa de Ópera tem o prazer de oferecer às sensibilidades maiores”.

À sensibilidade, por exemplo, de Paulo Vieira, professor da Universidade Federal da Paraíba, vê A Mais Forte, como uma “grande anatomia”. Ele explica o que é, e como se essa anatomia:
“Um corpo é um conjunto de órgãos com funções diferentes e finalidades semelhantes. Um labirinto é um conjunto de caminhos que não levam a lugar. Uma obra (no caso, de arte) é um conjunto de signos que remetem a outros signos. Um conjunto é um sistema. Um espelho é um mundo que não tem vida própria. A paixão é o yang. O apaixonado é o ying.
Está desenhada a anatomia da peça A Mais Forte, de Strindberg.
Mas uma peça de teatro (está dito) precisa ser lida no palco, onde ela se redimensiona, onde ela se realiza e onde o seu corpus se veste de vida.
A encenação de A Mais Forte por Carlos Bartolomeu vai em busca da essência do texto de Strindberg, e no fim desta busca toca (ou encontra) a sua dessemelhança: a essência da cultura brasileira. Ou ainda, por dessemelhança, o nosso caráter de povo. E vejam: são duas coisas diferentes: a peça de Strindberg e o caráter do brasileiro. Duas coisas diferentes que se unem na encenação de Carlos, como se fossem os dois olhos que se encontram no infinito, segundo a poética do Chico Buarque. Como se fossem dois contrários que se tocam, segundo o preceito da física – ou da metafísica”.

Um labirinto, dentro do qual se desenrola o conflito da paixão, o discurso da paixão, que o encenador recupera, também ele apaixonado.
O espelho, o jogo dos espelhos e dos reflexos. Uma dualidade, e nesta, os contrários: elementos com os quais Carlos Bartolomeu arma o seu jogo. Reflexo, imagem, diferenças: o espelho fornece os dados, mas não a resposta. E a encenação vai além da constatação da diferença: ela também é uma diferença; ela é também o seu duplo, o seu espelho, o seu reflexo.
Daí, os dois atos; o jogo com as cores preto/branco-azul/rosa -; o cenário, que se resume a um biombo (onde está desenhado um labirinto), uma mesa e duas cadeiras (também em preto e branco); o jogo som/silêncio: uma personagem fala sem parar, a outra não diz uma palavra; as marcas, que dividem a ação em dois lados separados por uma mesa; dois estilos, dois gêneros: no 1º ato o expressionismo/o melodrama; no 2º a comédia dell’arte/o cômico, a carnavalização.
Não mais o preto e o branco; mas o azul e o rosa; não mais o labirinto, mas uma cortina, sugerindo a festa; e uma grande máscara, colocada no canto do biombo. O carnaval, a mascarada, a grande festa do povo, e que é o povo brasileiro. O povo e o país, brasileiros, em sua transgressão, em sua alegria, em seu prazer, em sua desorganização, em seu delírio. Esta é a grande guinada que acontece no segundo ato de A Mais Forte.
E a encenação de Carlos Bartolomeu, continua Paulo Vieira:
“(...) é um espelho de muitas imagens. Não se pode esquecer, no meio destas imagens, o Kitsch, representado pelo melodrama. O Kitsch é a componente básica para se entender a cultura brasileira, que é, em última instância, a cultura européia carnavalizada.
A Mais Forte é a grande anatomia do ser e do não-ser, do senso e do nonsense, do chão e da paixão. O espetáculo é um universo de significação e, provavelmente, não se esgote aí, onde o alinhavei. É preciso ver para saber”.

Edélcio Mostaço, crítico de teatro da Folha de São Paulo, escrevendo para a revista Marca da Fantasia, que deixou de circular, daí o ineditismo do seu artigo, “A surpreendente dupla articulação da arte”, fala das suas gratas surpresas com A Mais Forte:
“(...) O espetáculo de Carlos Bartolomeu oferece-se pleno de significações, onde se cruzam certos exercícios estilísticos comandados com habilidade e um primoroso acabamento artístico repleto de signos cênicos dotados de eloqüência”.

Analisando a escritura cênica de Carlos Bartolomeu, Edélcio assinala a boa utilização do discurso duplo – o viés melodramático neo-expressionista do 1º ato – e a impostação geral próxima da comédia dell’arte, do 2º, numa releitura adequada feita pelo encenador. Prosseguindo em sua análise, afirma Edélcio que:
“(...) este jogo possui uma dupla articulação. Pode ser lido de várias maneiras (segundo padrões sociológicos, psicanalíticos, antropológicos, históricos, semiológicos, etc). São quase infinitas estas parelhas de situações dialeticamente relacionadas inda mais que, neste espetáculo, é utilizado o recurso da troca de atrizes nos dois desempenhos”.

Desempenhos notáveis, que demonstram “rara vitalidade e apurado jogo de contrastes, num trabalho de acabamento que nada fica a dever às grandes interpretações de atrizes de larga experiência (o que, me parece, difícil de ser conseguido numa cidade sem escolas e sem teatro regular)”.
Enfim, todo o universo cênico de A Mais Forte é pleno de significantes significativos:
“(...) cabelos, roupas, gestos, acessórios, um tom de falar e de se dirigir ao outro. Se na primeira parte este conjunto surge em sua escala olimpiana, na segunda aparecerá em sua escala infernal. Ou derrisória, para ficarmos numa metáfora menos forte e mais adequada à farsa desbragada com que as atrizes se atiram uma sobre a outra”.

E conclui, considerando o espetáculo como um dos melhores que estiveram em cartaz em 1984; um espetáculo que “preenche com todos os requisitos as exigências de um teatro culturalmente empenhado, numa realização artística totalmente empreendida”.
O prof. Paulo Michelotto define o trabalho de mise-em-scène de Carlos Bartolomeu, n’A Mais Forte, como um trabalho elaborado de grafia sonora e de iluminação. Considera A Mais Forte “um tratado inteiro de relações algébricas, um tratado inteiro sobre as relações de parentesco, de linguagem”.
Mas o que Paulo Michelotto ressalta “é ser um tratado, sobretudo de encenação, que sobressaindo-se das demais características torna-se dominante”.
A Mais Forte: um espetáculo que, representando Pernambuco no II Festival Brasileiro de Teatro Amador, realizado em Recife, em julho de 1984 colocou o teatro pernambucano no nível das melhores produções nacionais. "

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