29 de jul. de 2008


Do amor e suas desrazões - Carlos Bartolomeu

Há um tempo em que a literatura salva os corações; refina o espírito. Tal geografia configura caminhos onde há o romance e a lírica, e mais ainda, o discurso dedicado em sua aparência, ao equilíbrio. Principio, o meio e um fim transitam por uma ordem como figuras impressionistas, obedientes ao sentido. Mudar, compreender outro tipo de recorte, pode nos trazer a alternativa do desvario. Inicio, meio, um final, eis o tríptico que nossa visão insolente contempla a criação. Entretanto, a verdade prescinde de tal arremedo, e refuta o jogo de falseamento do humanamente eterno.
Uma constante de nosso desvio espiritual é tornar pétreo, o possível, o fluido, consequentemente atirando para o alto, aquilo que é; também, definindo como primitiva, a irrisão. Com isso, lançando esta para fora, na sombra, reafirmando a exclusiva instância, a de uma unidade que se iniciando, morre. O entendimento generalizado das criações e dentre elas, as do amor e sua fábula, nega as sombras e sua persuasiva convocação, hostilizando o contínuo pulso do irracional e de sua sonoridade, a um só tempo, inaugural e inatingível. A chama da humana eternidade é submetida ao dilúvio do tangível.
Habita dentro de nós, um tempo ilusório em que creditamos ao racional, o poder de auxiliar nosso projeto de proteção. Tal arquitetura reside sob o encobertamento do fato que a Vida é o urgente, o insano em sua dança shivaista e alegórica. Ato que não reconhece a morte ou o destrutivo como limite. Limite é o racional no campo da emoção e do sentimento. Sentir não é pensar, é existir sem fronteiras. Sentir é olhar com amorosa criatividade o desempenho do pensamento na sua constante tentativa de explicar, e sorrir dessa inutilidade.
Do Rilke nas Elegias de Duíno, Pasolini com seu Teorema, ao Satyricom de Petrônio, ou Dom Casmurro de Machado, todos esses eloqüentes documentos da irracionalidade no amar, nos convocam para o entendimento de que a realidade amorosa destrói em nossas vidas, o que seja descartável e ilusório, reorganizando nossas existências através da sua cruel inventividade. Recuperando o novo, o compartilhar, e a continuidade do ser, reafirmam a vitalidade de um cântico sobre o inalterado que é múltiplo.
Reencontrar junto ao texto de Tereza Alves a citação de Memórias de Adriano é recuperar um testemunho do belo na clássica visão de mundo, nele, a intimidade orgulha-se de sua identidade e invulgarmente se expõe. O amor é coisa de grandes, aristotélico quase; trágico, infinito. O amor modela a desrazão, vivenciando desfechos ciclicamente, num continuado vir a ser, repercutindo este acontecimento que se recria afirmativamente.
“Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor”.
Tal frase pinçada de seu contexto original pode parecer aos que desconhecem a obra de Yourcenar, aparentemente permissiva ou mesmo dogmática. Ao contrário do que supõe nossa tibieza, ela nos situa dentro do seu pensamento, convocando um tempo, os seus motivos e crenças. O amor é mais que um exercício, é uma aprendizagem totalizante. Iniciação do aqui e agora, o amor em sua ausência de neutralidade nos redireciona e nos aplaca perante a existência de proteção nenhuma. Como um anjo de filmes alemães, o amor contempla o abismo, e a sua missão é o mergulho. Na aparente derrota da queda frente ao insondável, o anjo se entrega. Abismar-se não é perecer, é amar.

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